quarta-feira, 17 de maio de 2017




Cracolândia, o inferno é aqui.

Confrontos saem do controle na degradada região central de São Paulo, onde um corpo foi encontrado dias após ter sido torturado e assassinado por traficantes. Torna-se inadiável uma ação do poder público que resgate a saúde e a dignidade dos usuários


Fabíola Perez

Os arredores da estação Júlio Prestes, no bairro da Luz, zona central de São Paulo, são tomados por catadores de lixo, moradores de rua e usuários de drogas. Esquálidos, desnutridos e trajando farrapos, eles vagam desorientados, em uma dura demonstração do quanto a vida humana pode se degradar. Uma combinação de pobreza, luta pela sobrevivência e entorpecimento pelo crack ditam as regras em uma área conhecida como “fluxo”, terra de ninguém evitada até por agentes de segurança, sejam guardas metropolitanos ou policiais militares. Na quarta-feira 10, após um suspeito ser detido ali por furto de celular, uma verdadeira cena de guerra se instaurou. Às 11h45, uma barricada feita de colchões, pneus, madeira e sucata prenunciava o confronto que se estenderia por toda a tarde. Do outro lado, policiais com bombas de efeito moral e gás lacrimogêneo se voltaram contra os moradores. O clima de tensão provocou disparos de armas de fogo, objetos incendiados e saques a lojas. Dias antes, o corpo de um homem fora encontrado na mesma região. Ele havia sido torturado e morto por traficantes após tentar resgatar uma usuária de drogas a pedido de uma mãe desesperada.
Após diversas estratégias de recuperação ao longo das últimas décadas, a Cracolândia sobrevive como uma doença incurável. Por ali circulam a cada dia dois mil usuários de drogas em diferentes estágios de dependência, 700 deles no fluxo. Paredes exibem o número 1533, que indica a presença da facção criminosa Primeiro Comando da Capital, o PCC. Nos últimos meses, barracas que vendem drogas se proliferaram nas ruas do fluxo. “A situação está esquentando porque há uma espécie de indefinição nos programas municipais e estaduais que atendem a região”, diz Maurício Fiore, antropólogo e coordenador da Plataforma Brasileira de Política de Drogas. “As interferências policiais deixaram os ânimos acirrados e com isso houve uma reconfiguração na venda de drogas, que ocorre de forma mais exposta”, afirma. Para o especialista, a principal falha nas políticas implantadas até hoje na Cracolândia é o desejo de sanar todos os problemas de forma imediatista. “Ações de inteligência para diminuir a chegada do crack levariam, no mínimo, entre um e dois anos para gerar os primeiros resultados”, estima. Se há um consenso em aplicar penas aos traficantes e políticas de saúde aos usuários, a lei de drogas impõe critérios subjetivos para distinguir o porte para uso e para o tráfico.
“Usuários sempre reagem”
Bruno de Oliveira Tavares tinha 34 anos e trabalhava na empresa Restart, especializada em remoções clínicas e psiquiátricas. Acionado pela mãe de uma usuária de crack, de 27 anos, ele foi até o fluxo em busca da garota. Ficou desaparecido por dias. Na segunda-feira 8, seu corpo foi encontrado. Segundo o proprietário da empresa, Tavares havia sido levado por traficantes. Investigadores da polícia afirmam que, antes de morrer, ele foi submetido a um interrogatório em cárcere privado e torturado. Segundo o delegado Osvany Zanetta Barbosa, titular do 3º DP, que apura o caso, a Tropa de Choque não recebeu autorização para agir. “Haveria consequências porque os usuários sempre reagem à entrada de policiais.”



ABANDONO Mulher grávida e usuária de crack: assistência à saúde e recuperação de moradores é primordial (Crédito:Stringer/Brazil)

O assassinato expõe duas negligências das autoridades: com a assistência à saúde e com a segurança. Ex-usuário de crack, Tavares era um dos muitos nessa condição que prestam serviço a empresas que, sem regulamentação, se disseminam no local com o objetivo de internar dependentes que se recusam a receber tratamento.
Internações, segundo o medido psiquiatra da Unicamp, Luís Fernando Tófoli, só podem ocorrer depois de uma avaliação médica, mesmo nos casos de ordem judicial. O tratamento ao usuário, explica Tófoli, deveria reunir cuidados ambulatoriais, cuidados gerais para a população de rua, unidades de acolhimento transitório e nos casos em que a pessoa estiver com um estado mental prejudicado, colocando em risco sua vida ou de outras pessoas, ela pode vir a ser internada. “É necessário também uma estratégia para redução de danos, para proporcionar equilíbrio a alguns usuários sem exigir a abstinência total”, afirma o médico. “Políticas massificadas não funcionam para todos os usuários.” Em relação à segurança, a Polícia Civil deve mapear locais onde há venda de drogas para flagrar traficantes fora da Cracolândia.
Reverter o cenário desolador que se instalou desde a década de 1990 na região da Luz depende também de programas de assistência social. “Insistir em um tratamento repressivo, remoções rápidas sem oferecer soluções a longo prazo só fará a tensão se agravar”, afirma André Zanetic, pesquisador do Núcleo de Estudos da Violência da Universidade de São Paulo. O programa “De Braços Abertos”, criado no início de 2014, oferecia atividades profissionais, bolsa auxílio e habitação para usuários de drogas como política de redução de danos. Mais de 70% dos beneficiários declararam ter diminuído significativamente o uso de crack.
Com a gestão do prefeito João Dória (PSDB), um novo programa, batizado “Redenção”, está em fase de planejamento e deverá ser lançado em agosto. A ideia, segundo a prefeitura, é manter características do anterior com algumas alterações. Na quinta-feira 11, Dória afirmou que a Cracolândia deve acabar “muito antes” de seu mandato chegar ao fim, em dezembro de 2020. Entretanto, especialistas dizem que o caos urbano não será resolvido no curto prazo. “A Cracolândia é um efeito colateral da sociedade em que vivemos, que marginaliza e tem questões sociais a serem resolvidas”, diz Tófoli. Resolvê-las pode levar tempo, mas resgatar a dignidade humana é inadiável.
Conflitos recorrentes








CONTROLE Central da Guarda Civil: nos conflitos, usuário destruiu uma das câmeras de vigilância (Crédito:Claudio Gatti)

23 de fevereiro
ÀS 12h, uma briga na área do fluxo fez com que usuários de drogas atirassem fogo em sofás, madeiras e em policiais. A PM reagiu com bombas de efeito moral.
23 de março
Às 11h30, dois suspeitos de roubar um celular foram detidos pela PM na rua Dino Bueno, o que deu início a mais um confronto entre usuários e guardas
3 de maio
Um funcionário de uma empresa de remoções clínicas vai à Cracolândia para resgatar uma garota, a pedido da mãe. No dia 8, o corpo do homem é encontrado no bairro do Bom Retiro

10 de maio
A partir de um roubo de celular, guardas civis metropolitanos e moradores da região chamada de “fluxo” entram em conflito. Houve troca de tiros e quatro pessoas foram detidas.

Stringer/Brazil
www istoe.com.br


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